.
.
Tenho saudades do tempo em que gente era gente: gente, pessoa, com olhos, boca, rosto, sentimentos e coração. Todos se conheciam pelos nomes, sabiam datas de aniversário e cultivavam o encontro com o outro como um algo precioso, uma oportunidade a compartilhar sempre que possível. Talvez fosse um tempo em que o rolo compressor da velocidade não atropelasse a todos e a tudo; um tempo no qual a quantidade de pessoas aglutinadas em torno de uma realidade qualquer não era tão grande. Talvez fosse um tempo em que havia menos pessoas em nossas vidas, mas as que haviam mereciam de nós toda consideração e afeto, mereciam mais atenção e respeito.
Eu me preocupo bastante e acho absurdos os índices atuais de crescimento demográfico (principalmente quando o planeta adoece gravemente, prometendo medidas regeneradoras cruéis em busca de seu reequilíbrio), mas entendo que a população cresça a níveis alarmantes todos os anos no mundo inteiro. Afinal, uns 90% das pessoas que decidem tornar-se pais ou mães nunca parou para pensar nas profundas implicações que cercam a manutenção digna de cada nova vida, na imensa responsabilidade que cada novo ser representa (ou ao menos deveria representar) para seus pais, para a sociedade e para o planeta. Eu, ao menos, tento compreender a necessidade emocional do casal que decide ter filhos “para vivenciar a maternidade e a paternidade”, como se ao novo ser que por aí vem fossem suficientes a curiosidade e o desejo meio egoísta desses dois para ter garantida uma vida decente e digna.
Mas não entendo a razão deste crescimento populacional não ser acompanhado por um desenvolvimento efetivo nos recursos materiais e humanos necessários ao suporte deste acúmulo de vidas. Não, o crescimento do entorno não prospera na medida em que crescem as populações: sempre há médicos faltando, escolas faltando, empregos faltando, espaço faltando, comida faltando, moradias faltando, ética faltando. Como diria o caipira (ainda há caipiras?): “-É, cumpadi... é uma vida de fartura: farta tudo”!
É verdade que existem áreas em que algo sobra, mas essa sobra, em geral, não me parece muito promissora. Sobra TV, falta cultura; sobram revistas de moda, fofocas ou novelas, falta boa literatura; sobra sexo, falta amor; sobra cerveja, falta convívio familiar; sobra futebol, festa e balada, falta compromisso com a realidade; sobram shopping centers, falta consumo consciente; sobra religião, falta integridade; sobram namorados e transas, falta afeto e respeito; sobram amizades instantâneas, faltam alma e coração nas relações pessoais; sobra assistencialismo por parte do governo, falta responsabilidade familiar em relação à educação e gestão dos próprios filhos.
Enquanto o planeta doente, já febril e superlotado, pede socorro, a população cresce desmedidamente e os governos fazem apenas nada para desestimular essa loucura. Ou os governos estão cegos ou apenas se acomodam, pois mexer com isso é por a mão em vespeiro, é um tipo de suicídio político. Aliás, aos que vivem salvaguardados pelo poder, o que importam as dores alheias?
E o Papa, num arroubo quixotesco, investe contra os moinhos de vento da carne na África, mantendo a proibição do uso da camisinha amparado por um discurso antigo, para mim extremamente discutível e ambíguo. Baseado em escrituras que, se tomadas ao pé da letra, sem reflexão e considerações mais aprofundadas podem parecer um tanto descabidas, ele proíbe aos africanos o uso dos preservativos, sem reconhecer que nascer ali já é quase uma sentença de morte cruel e dolorosa, não uma benção divina dos céus. Será que ele compreende que, com raríssimas exceções, nascer na África hoje é estar, desde a primeira respiração, condenado a morrer brutalmente? Diariamente, adultos e crianças morrem de fome, à míngua; outros, nas brutais disputas de poder, nas guerras civis; outros tantos de AIDS, que lá prolifera livremente. O resto do mundo se cala, ignora, faz de conta que não é com ele, mas a dor existe, o sofrimento é real e é cruel. Mas a proibição da camisinha, última barreira contra a disseminação da AIDS, só irá melhorar este quadro, certo?
Porém, a esperança permanece: em meio a tudo isso há ainda algumas pessoas que protestam. Protestam, perplexas com essa veloz impessoalidade, com essa coisificação do ser humano, gerada pelo número excessivo de vidas sobre o planeta. Vidas banalizadas exatamente pela sua quantidade grandiosa (quando se tem muito de uma coisa, ela acaba por ter seu valor diminuído). Pessoas protestam, como o meu querido Luiz Fernando Veríssimo a seguir:
“Nesta altura da vida já não sei mais quem sou. Vejam só que dilema: na ficha da loja sou CLIENTE; no restaurante FREGUÊS; quando alugo uma casa, INQUILINO; na condução, PASSAGEIRO; nos correios, REMETENTE; no supermercado, CONSUMIDOR. Para a Receita Federal, CONTRIBUINTE; se vendo algo importado, CONTRABANDISTA. Se revendo algo, sou MUAMBEIRO; se o carnê está com o prazo vencido, INADIMPLENTE; se não pago impostos, SONEGADOR. Para votar ELEITOR, mas em comícios, MASSA. Em viagens, TURISTA, na rua, caminhando, PEDESTRE; se sou atropelado, ACIDENTADO. No hospital, PACIENTE; nos jornais viro VÍTIMA. Se compro um livro, LEITOR; se ouço rádio, OUVINTE. Para o Ibope, ESPECTADOR; para apresentador de televisão, TELESPECTADOR; no campo de futebol, TORCEDOR. Se sou tricolor, SOFREDOR. Agora, já virei GALERA. (se trabalho na CHESF, sou COLABORADOR). E, quando morrer, uns dirão FINADO, outros DEFUNTO, para outros, EXTINTO, para o povão PRESUNTO. Em certos círculos espiritualistas serei DESENCARNADO; evangélicos dirão que fui ARREBATADO. E o pior de tudo é que para todo governante sou apenas um IMBECIL!!! E pensar que um dia já fui mais EU”.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário