domingo, 1 de fevereiro de 2009

A BAILARINA E O HOMEM RIDÍCULO E VIL.



Ocasionalmente me pego prestando bastante atenção em crônicas, em poesias, nas letras das músicas que tocam no meu carro (são cds que seleciono com carinho, atenta apenas ao meu gosto pessoal). E, como não poderia deixar de ser, depois de ouvi-las, tento “ler nas entrelinhas” aquilo que não foi dito. Deixo aqui duas das minhas fontes de curtição e reflexão para vocês se deliciarem com elas e, quem sabe, pensarem sobre.

No primeiro, enquanto faz um rápido “mea culpa”, o autor (meu bem-amado Fernando Pessoa) discorre sobre a pretensa perfeição alheia em detrimento de sua parca, porém admitida, humanidade, enquanto que no segundo os autores (Chico Buarque e Edu Lobo, sempre maravilhosos) falam sobre uma perfeição inexistente, mas que nossos olhos enxergam, nas vidas alheias, em projeções que todos nós fazemos, inevitavelmente, em alguns momentos de nossas vidas.

POEMA EM LINHA RETA.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)


CIRANDA DA BAILARINA.

Procurando bem todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga e tem ameba só a bailarina é que não tem
E não tem coceira, verruga nem frieira, nem falta de maneira ela não tem...

Futucando bem todo mundo tem piolho ou tem cheiro de creolina
todo mundo tem um irmão meio zarolho só a bailarina é que não tem.
Nem unha encardida, nem dente com comida, nem casca de ferida ela não tem...

Não livra ninguém, todo mundo tem remela quando acorda as seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela só a bailarina é que não tem...
Medo de subir, gente, medo de cair, gente, medo de vertigem, quem não tem?

Confessando bem todo mundo faz pecado logo assim que a missa termina.
Todo mundo tem um primeiro namorado só a bailarina é que não tem.
Sujo atrás da orelha, bigode de groselha, calcinha um pouco velha ela não tem...

O padre também pode até ficar vermelho se o vento levanta a batina
Reparando bem todo mundo tem pentelho só a bailarina é que não tem...
Sala sem mobília, goteira na vasilha, problema na família quem não tem?

Procurando bem... todo mundo tem....

(Edu Lobo/ Chico Buarque)
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Era isso: nem super-heróis nem vilões, somos apenas humanos. Fico aqui torcendo para que todos nós ajustemos nossa visão e equilibremos nossos julgamentos, reconhecendo que somos muito menos vis do que tememos ser e que ninguém, mas ninguém mesmo, deixa de ter as características imperfeições humanas que possuímos e, que por sinal, nos irmanam e igualam diante da vida.


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