“Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes ver-me.” (Mateus 25:34–36).
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É dia 11 de Dezembro de 2009, faltam apenas 14 dias para o Natal, data máxima da cristandade, uma festa de amor, paz e fraternidade.
São 22h00min e eu sigo de carro com minha filha procurando um endereço nas ruas próximas ao shopping center. Garoa, o tempo não está bom e, seguindo as instruções que um amigo me deu, aventuro-me a seguir um caminho que parte da frente da Ford em direção ao Jardim Aeroporto, a Avenida Charles Schneider. Ao terminar de fazer a primeira curva, minha filha fala:
-“Mãe, eu acho que tem uma pessoa jogada na pista, perto do canteiro... não deu para ver se é homem ou mulher, mas tem alguém deitado lá!”.
Retruco que não vi nada, que não percebi nada estranho no caminho, mas ela segue afirmando o que viu, assustada até. Sigo uns metros adiante, encontro um retorno e volto devagar, atenta a qualquer sinal de uma presença humana no asfalto molhado. E então eu vejo: um corpo caído do outro lado do canteiro central.
Paro o carro ao lado do canteiro, ligo o pisca-alerta, peço a ela que fique dentro do carro fechado e desço para olhar. E é verdade: lá está um homem de cerca de uns sessenta anos ou mais, caído em pose estranha, desacordado no asfalto. Verifico que ele respira, mas não me atrevo a tocá-lo (o lugar é ermo, a noite está escura, chove e prefiro esperar que alguém apareça para ajudar).
Imediatamente ligo para190, identifico-me e fico esperando pelo socorro, postada em frente ao corpo, desviando o trânsito para que ninguém corra o risco de atropelar o homem. Assim como eu não o vi de longe, as pessoas também podem não vê-lo, certo? Gesticulo então para cada carro que passa, pedindo-lhes que sigam pela outra pista, evitando um provável atropelamento. Todos que passam olham curiosos para fora do carro, tentando entender o que faz uma mulher no meio da pista às dez da noite, debaixo da garoa, gesticulando como um guarda de trânsito. Sim, todos olham, mas olham sem ver, pois ninguém para, se interessa ou oferece ajuda. Um motociclista mais jovem passa, para, volta e pergunta o que houve. Ao ouvir meu relato e a observação de que já chamei o resgate, segue seu caminho.
O homem acorda, se move e geme; eu pergunto o que houve, se ele está ferido. Ele balbucia coisas que eu não entendo e assim eu permaneço lá, por uns cinco minutos, pedindo a ele que não se levante, que tenha calma. Este é o tempo que leva para uma viatura da PM encostar, logo seguida pelo carro do resgate dos bombeiros. Eles me perguntam o que ocorreu e eu narro os fatos. Os paramédicos (muito grata pela presteza e profissionalismo de vocês!) examinam o homem, colocam-no na maca e se preparam para levá-lo ao hospital. Não fico para ver o final, estou com frio, molhada, abalada e quero ir para casa.
Vou embora pensando: ele é pobre sim, percebe-se pelas roupas gastas, pelo chinelo de dedos velho. Embora eu não tenha sentido cheiro de bebida, ele pode ter bebido e caído, comportamento execrável, certo? Mas não consigo me desvencilhar da idéia de que, seja lá o que for que tenha acontecido, ele é ou foi filho de alguém; ele deve ser pai de outros alguéns e, é quase certo, há pessoas em algum lugar da cidade que esperam por ele, que aguardam preocupadas pela sua volta (ou não, o que seria muito pior). E me lembro que o Natal se aproxima, que todos festejarão a data cristã do amor divino, e confraternizarão desejando paz, alegria e prosperidade aos seus conhecidos, absolutamente indiferentes aos desconhecidos.
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É dia 13 de Dezembro de 2009, faltam apenas doze dias para o Natal, data máxima da cristandade, uma festa de amor, paz e fraternidade.
São sete e meia da noite e eu sigo pela Rua Rafael Braga em busca da casa de um amigo que me acompanhará à festa de Tremembé. Ao fazer o retorno, já quase no fim da avenida, para subir a rua da casa deste amigo, vejo uma criança muito pequena encostada num muro, acocorada e encolhidinha, com cara de choro e absolutamente sozinha.
Passo, olho, paro, dou marcha à ré, estaciono ao lado da calçada e desço, com calma, para não assustá-lo. Ele está descalço, veste uma blusinha de soft (faz frio!) e chupa uma manga meio podre. Pergunto a ele sobre a mamãe e ele chora, misturando o caldo da manga, que não tira da boca, com suas lágrimas. Ele não responde, então pergunto se ele está com algum irmãozinho e ele apenas continua a chorar. É quase um bebê, não tem nem dois anos.
Continuo agachada ao lado dele, olhando em volta, buscando ansiosamente com o olhar alguém que possa estar ligado a ele. É quase noite e fico preocupada. E então vejo vir do fim da rua um garoto de uns oito ou nove anos, só de calção, segurando uma pipa. Ele chega e eu pergunto se ele está com o garotinho. Ele nega, diz que não, e me pergunta: -“Tia, porque você não “pega ele” pra você e leva pra sua casa?” Fico aborrecida e digo a ele que não é assim que as coisas funcionam. Quando digo que vou ligar para polícia vir recolher o garotinho, ele diz que é seu irmão e que está com ele. Duvido, peço a ele que confirme e ele, com naturalidade, diz que saiu pra ir buscar não sei o que, pedindo que o pequeno não saísse dali.
Quando começo a lhe “passar um pito” por ter deixado o garotinho sozinho às margens da movimentada avenida, correndo risco iminente de vida, chega um adolescente de uns quinze ou dezesseis anos, mais bem vestido que os dois, também segurando uma pipa. Ele diz que está com os dois e eu conto o que aconteceu. Ele ri bastante quando digo que o garoto maior me sugeriu levar o pequeno embora comigo, para minha casa. Não acho a menor graça e começo a falar da irresponsabilidade dos dois, já voltando para o carro. E então o garoto menor fala agressivamente, talvez se sentindo subitamente corajoso, amparado pela presença do maior -”Vai embora tia, pega seu carro e some... vai cuidar da sua vida”. E vem em direção ao carro, quando lhe digo que eu acho que ele não tem nem tamanho para saber do que está falando e que eu vou resolver de uma vez o problema da forma certa. Pego o celular e começo a ligar para a polícia. Ele se atemoriza, pega o menorzinho pelo braço e fala –“Ih, tia, a gente já ta indo, a gente já ta indo...” e sai junto com o maior, arrastando o pequenino ainda choroso pelo braço em direção ao fim da avenida. Respiro fundo, dou a partida e sigo meu caminho, com lágrimas incômodas ameaçando brotar dos olhos, tentando compreender (e aceitar, o que é quase impossível) que as coisas são assim.
Numa noite, há 2009 anos, Jesus nasceu pobre, numa manjedoura, mas ele tinha pai e mãe, ele dispunha de proteção e amor e recebeu a visita de Reis. Neste Natal, quantas crianças pequenas estarão chorando encolhidas junto a paredes, solitárias e atemorizadas pela brutalidade dos dias? E nós estaremos festejando junto aos nossos, alheios ao choro alheio e à dor que afligem alguns desvalidos da nossa sociedade. Dois mil e nove anos depois da vinda do Mestre ainda caminhamos errática e lentamente na direção de nos tornarmos seres amorosos, fraternos e verdadeiramente humanos em relação ao nosso próximo.
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“Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes ver-me.” (Mateus 25:34–36).
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