domingo, 1 de fevereiro de 2009

A VIAGEM.



É Sábado e o relógio já marca 23h00min. Após oito horas de aulas na faculdade e outras tantas de espera, finalmente embarco e sento no banco do ônibus que deverá conduzir-me de volta à minha casa, distante 200 km. Estico as pernas e reclino o encosto do banco, preparando meu ambiente das próximas três horas e meia.

E é então que eu o vejo: ele deve ter uns trinta anos, aproximadamente 1.70m de altura, cabelos crespos de cor indefinida e pele parda (daquele tom mais indefinido ainda que, em minha opinião, deveria se chamar "pardus brasiliensis", visto ser a cor da esmagadora maioria de nós). É um tipo de homem comum, desses que vemos todos os minutos de todos os dias em qualquer lugar de qualquer rua.

Ele carrega uma mochila puída, que creio que um dia tenha sido preta. Sem jeito, ele pede licença com um leve sotaque nordestino e coloca a mochila no bagageiro sobre a minha cabeça, saindo apressado em busca de alguma coisa que deixou lá fora. Retorna em seguida com uma criança de uns dois anos nos braços seguido de perto por uma mulher tão parda e comum quanto ele, talvez alguns anos mais nova. Eles transpiram suor e ansiedade, talvez pela viagem, talvez pelas incertezas da vida, não sei bem ao certo.

Ele se senta ao meu lado depois de acomodar a mulher, a bagagem dela e a criança nos dois bancos ao lado dos nossos e começa a mexer nos bolsos, tirando deles algumas notas amarrotadas, que alisa e arruma em algum tipo de ordem que foge ao meu conhecimento. Depois de contar tudo com muito cuidado, torna a guardar o dinheiro no bolso da calça.

O ônibus começa a andar e ele pergunta algo à mulher do outro lado do corredor, em voz baixa. Ela responde também baixinho, e ajeita melhor a criança no banco, reclinando-a sobre seu colo para que durma mais confortavelmente.

Logo imagino: são marido e mulher e estão viajando com o filho para algum lugar, por alguma razão. Porém, eles não são em nada parecidos com as pessoas que viajam nesta linha, gente próspera que geralmente viaja por prazer, lazer, para aumentar a cultura ou as experiências da vida. Não, eles me parecem na verdade ter usado seus últimos tostões naquela viagem que os levará de Curitiba a São Paulo num percurso de mais de seis horas e quatrocentos quilômetros.

E me pergunto silenciosamente: eles vão em busca de que, movidos pelo que? Estão em busca de encontrar algo bom lá na outra cidade grande ou estarão buscando deixar algo inútil e doloroso para trás? Serão, como outros milhões de brasileiros, impelidos sempre em frente pela fome, pela esperança de dias melhores, pela busca da melhoria material ou estarão apenas voltando às suas origens distantes, vencidos pela dureza econômica, pelo descaso social e pela falta de amor e fraternidade que atinge indistintamente brancos e negros, velhos e jovens, religiosos e ateus?

No decorrer da viagem ele se levanta algumas vezes do seu banco e vai em socorro da mulher quando é necessário mover a criança sem acordá-la, com um carinho quase impossível de se prever em mãos tão grossas e aparentemente insensíveis. E eles agem em movimentos cadenciados, quase ensaiados, sussurrando entre si palavras quase inaudíveis, nas quais pressinto cumplicidade, parceria e sintonia, como se ambos pulsassem numa mesma velocidade e intensidade, em total e completa harmonia.

Toda a pobreza que vi estampada nas roupas e bagagens, denunciada também pelas poucas notas tão cuidadosamente ajeitadas no fundo dos bolsos rotos, de repente se esvai, evapora, deixando em seu lugar a sensação de uma riqueza inigualável, de um possuir um algo que não tem preço. No lugar da pobreza, salta aos olhos agora apenas uma realização humana admirável, a do encontro real, afetuoso e respeitoso entre dois seres humanos que, apesar dos tropeços e do peso da vida cotidiana, usualmente dura e injusta, conseguem reservar um espaço dentro de si para o amor e o carinho, para o cuidado mútuo, para uma parceria efetiva compartilhada com outro ser, carente de cuidados, recursos e amor, o filho.

E neste momento, subitamente, parecem-me fúteis minhas pequenas buscas intelectuais, de crescimento profissional, da satisfação do ego com aquisições materiais, do encontro perfeito que meu coração idealiza. Tudo isso de repente me parece esvaziado de valor, pois compreendo que por mais que eu atinja todos meus objetivos atuais nada terá valido a pena se eu não levar junto comigo meu coração, se eu me esquecer que sem o outro "eu" não sou, se me deixar levar pela idéia (ilusória e geral) de que ter as vontades satisfeitas é o único e certo caminho para a felicidade.

Eu nunca soube seus nomes nem endereços, nunca pude saber ao certo os motivos da sua viagem, mas sempre que me lembro da lição de amor e ternura que presenciei naquele ônibus envio a eles pensamentos de afeto e desejos de felicidades. Eles merecem!

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