quinta-feira, 21 de abril de 2011

OS ECOS DO DESCASO.


É cedo, a amanhã raiou há pouco. Noêmia se levanta, vai ao banheiro, lava o rosto, prende o longo cabelo num coque rápido e segue para a cozinha. Põe a água para ferver para o café, abre a janela e dá uma olhada no céu azul, imaginando quanta roupa ela poderá lavar durante o dia. Fica feliz, não há sinal de chuva e ela vai poder adiantar o serviço.

Abre o armário e encontra o saco de pão amassado, mas não vazio. O filho mais velho havia comido quase todos os pães ao chegar da escola, tarde da noite, cansado e faminto, mas ainda havia o suficiente para o café da manhã. Caprichosamente, ela pega os pãezinhos, umedece um por um e os coloca na assadeira de alumínio, levando-os ao forno para ficarem novamente crocantes.


Estica a toalha limpa sobre a mesa, pega duas canecas, dois pratinhos, uma faca e colherinhas. Lembra-se do açucareiro, da margarina e das poucas fatias de mortadela que haviam sobrado do dia anterior. Desde que o marido tinha ido embora com outra mulher, a vida ficara mais difícil e solitária, mas ela estava dando conta de criar os dois filhos com seu trabalho de costureira e com a ajuda dos irmãos da igreja, sempre presentes quando a necessidade se fazia maior.


Passa o café e vai acordar Ritinha, a filha de dez anos, que dorme na cama ao lado da sua e é fã de mortadela.A casa é pequena, então todos dividem o mesmo quarto. Chama pela filha, que acorda e se espreguiça. Diz bom dia saindo em seguida aos pulos, para lavar o rosto. Logo depois estão ambas sentadas à mesa, conversando sobre assuntos banais enquanto engolem o café com pão. Terminando a rápida refeição, Ritinha pega sua mochila, cheia de chaveirinhos pendurados, e se dirige contente para a escola, enquanto a mãe começa a limpeza da casa já pensando nas peças a cortar e costurar.


Em outro canto da cidade Wellington acorda sozinho, na casa quase sem móveis, sem beleza e sem aconchego. Sente fome, mas não há quem lhe faça o café ou lhe dirija um bom dia. Isso só acentua sua sensação de solidão, sua dor interior, fazendo fermentar seus pensamentos desencontrados. Pai e mãe, irmãos, amigos... tudo isso lhe falta, nada disso pertence à sua rotina. Ele tentou fazer amigos nas escolas onde estudou, mas nunca conseguiu ser realmente notado, visto, aceito, querido, sendo sempre apenas um nome a mais na lista de alunos e um rosto anônimo e desiludido na multidão das salas de aulas.


O pouco conforto que encontrara nos últimos anos solitários viera das leituras de textos religiosos que caíram em suas mãos por acaso. Incapaz de interpretá-los e compreendê-los sozinho, tanto quanto de procurar novamente o convívio de um grupo humano numa igreja qualquer, absorve destas leituras apenas conceitos vagos, representados por palavras desconexas que se agitam no seu interior. E hoje, por sinal, elas se agitam mais do que nunca, tornando-se dolorosas interrogações e acusações, afirmações de desesperança e abandono. Por onde andavam aqueles que lhe tinham negado amizade? Como viveriam aqueles que o haviam ignorado e espezinhado por anos a fio?


As perguntas crescem junto com a revolta, com a dor, com a solidão, com a sua incapacidade de lidar com a enormidade da sua confusão mental. Interiormente ele avalia novamente, como já vem fazendo há meses, a possibilidade de dar um fim àquele estado de coisas, colocando em prática seus planos de desforra e vingança. Decide-se a realizar os planos naquele mesmo dia. Para que esperar mais? Pelo que esperar mais? Pela compassividade de uma sociedade que nem sequer nota sua existência?


Resoluto, junta dentro da mochila as armas, as balas, a revolta, a solidão, a dor do anonimato e da falta de amor e segue resoluto para o local da sua ultima tentativa de uma vida normal, a escola onde estudou nos últimos anos. Ao chegar lá, não encontra mais os alunos que o desprezaram no seu tempo, mas seus olhos os enxergam representados por outras crianças inocentes, que ele ataca furiosamente pensando, talvez, em assim poder exterminar a dor que o corrói por dentro. Mata, fere, é baleado e, num ato final de supremo desespero, tira a própria vida, deixando registrado num papel qualquer toda sua dor e confusão interiores.


Daqui para frente, Noêmia não tomará mais seu café da manhã ao lado de Ritinha, porque ela e sua predileção por mortadela terminaram ali, no tiroteio. Daqui para frente, não haverá mais Wellington de tal, um coitado anônimo que só conseguiu despertar a atenção das pessoas de todo um planeta quando se tornou um assassino de crianças inocentes.


Ninguém ganha, todos perdem,


e infelizmente nada mudará para melhor depois disso.


Entristecedor.

domingo, 27 de março de 2011

MILHO AOS POMBOS.

Grande Zé Geraldo!



Ao escrever esta canção, cujo título eu tomei por empréstimo para nomear minha coluna de hoje, ele provavelmente pretendia despertar no cidadão médio alguma capacidade de reflexão para a urgência das coisas ditas incomuns, aquelas que fogem à rotina do nosso cotidiano e se escondem dos nossos olhos, mas que merecem um olhar diferenciado de nossa parte.



Ocasionalmente eu componho músicas (já até ganhei alguns festivais) e, quem sabe, um dia eu também componha algo assim necessário, algo assim lúcido como Milho aos Pombos, falando com a poesia necessária sobre as coisas que precisam ser ditas e ouvidas para que algo, talvez, mude algum dia para melhor na nossa sociedade, no nosso planeta.



E eu falaria de muitas coisas... como a dor do outro, que existe para além da minha pele e pela qual eu passo indiferente; coisas como a fome, essa assassina encruada que passeia pelo mundo a ceifar populações inteiras, como as das nações africanas mais pobres, e a matar milhares de crianças em tenra idade todos os dias; coisas como a violência das muitas guerras e revoluções que hoje convulsionam alguns países africanos; coisas ainda como a ignorante violência que, mascarada de religião, oprime e assassina milhares de mulheres todos os dias nos países islâmicos. Se sobrasse inspiração depois de tudo isso, poderia falar ainda do calor do toque de outra mão na minha, de lábios macios sobre os meus, mas não creio que estarei no clima.



Caso eu escreva tal canção algum dia, estarei preparada para o fato de que muitos não gostarão de perceber, na minha canção, entrelinhas plenas de tantos significados e de críticas duras a alguns aspectos sociais e políticos amplamente aceitos e festejados. Devo admitir também que, com certeza, terei composto sem que alguém tenha me pedido isso, tanto quanto ninguém pediu a ele, o Zé Geraldo, para colocar em versos sua opinião sobre os assuntos que ele desnuda em sua letra e nem pediu a ele que levantasse estas lebres todas e as jogasse na cara dos alienados, demonstrando o quanto a cegueira e a acomodação das pessoas pode contribuir para este estado de coisas (mas ele o fez porque este é o papel do artista, do comunicador e de todo aquele que se dirige a algum grupo em algum momento, seja ele um cantor, um autor, um professor, um escritor, um colunista ou um cineasta, o papel de levar idéias e informações incomuns ao público, idéias que funcionem como um fermento no o meio das massas que jazem inertes por falta de formação, informação ou por mero comodismo).



Assim, seguindo os passos de tantos outros que levantaram lebres e agitaram idéias antes de mim (mas provavelmente com muito menor brilhantismo), eu escolho meus assuntos de acordo com aquilo que me ocupa a mente e o coração no momento em que escrevo, sempre buscando presentear o meu leitor com um texto-prisma, um algo cristalino e de várias faces, capaz de refletir a mesma realidade em infinitas nuances e em ângulos caprichosos e incomuns.



Por isso ocasionalmente deixo de lado os aspectos mais belos e poéticos dos dias e falo daquilo que, mesmo podendo ser incômodo para alguns poucos e incomum para muitos, são assuntos que me apaixonam, que me incomodam, que eu estudo e pesquiso porque atiçam minha curiosidade e julgo pertinentes, necessários, abordando-os fraternamente, de maneira fundamentada e sensata. Compartilhar com as pessoas os resultados que obtenho nas minhas pesquisas sobre tais assuntos é muito compensador porque sei que eles são incomuns, que eles não são, em geral, abordados pelas mídias, e eu creio que todas as pessoas do mundo têm o direito de saber um pouco de tudo aquilo que ocorre por aí, seja nos nossos corações, nos nossos corpos, na nossa cidade ou país, no continente ou no planeta... e isso por mais que alguns assuntos pareçam risíveis, estranhos e/ou incômodos.



E mais, eu sinto que estas conclusões a que chego, a partir do meu sentir, das minhas observações e estudos pessoais, não pertencem a mim apenas. Não, elas são universais, são do interesse geral, porque atingem a todos nós, porque alcançam de alguma forma a todos os que aqui vivem e não são um algo ambíguo como um ponto de vista pessoal sobre o amor ou predileção por um partido político ou por um time de futebol, amores que importam ao indivíduo que sente tal amor e a mais ninguém além dele. Meus informes e conclusões são de interesse geral porque abordam o genérico, o universal, o comum a todos nós, por isso julgo útil e agradável partilhá-los.



Assim sendo apertem os cintos, queridos leitores, porque mais questionamentos, notícias incomuns e assuntos espinhosos vêm pela frente. Mesmo por que eles, os fatos, ocorrem independentemente de se acreditar previamente neles e de os desejarmos ou não. .

E AGORA, JOSÉ?

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A internet ferveu nos últimos dias. Aos montes, pipocaram em toda parte notícias, fotos, vídeos, textos e reportagens abordando, sob todos os ângulos possíveis, o terremoto e o conseqüente tsunami do Japão. Vi, na telinha do meu computador, cenas inéditas e cruéis que não vi na TV; conheci, através dos textos publicados em blogs e sites de notícias, alguns pontos de vista amplos e bem fundamentados sobre o evento sísmico, assim com também outros tantos bastante risíveis. Participei e moderei muitos debates sobre o tema nas listas de discussão que assino.

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Certo, tudo isso é de se esperar quando um evento catastrófico desta magnitude levanta poeira (no caso não poeira, mas muralhas de água) na nossa aldeia global. Aldeia sim, porque hoje estamos inegavelmente conectados, ligados, amarrados uns aos outros, somos todos UM. Por menos que entendamos ou aceitemos esta realidade, sim, somos UM.

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A catástrofe doeu no Japão e vai doer, num efeito dominó inevitável, no mundo todo. Seja por conta da radiação (que agora ameaça se espalhar amplamente), pelos inevitáveis problemas econômicos que surgirão para assombrar ainda mais as já combalidas finanças japonesas, russas e americanas (há outros falidos, mas vamos deixar para lá por enquanto) ou ainda pela escassez de alimentos que vai se desdobrar daqui para ali abraçando nação após nação, sem dar tréguas, eu tenho certeza que vai doer.

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Eu nutro uma imensa simpatia pelo povo japonês. Valentes, corajosos, organizados, laboriosos, eles saíram da segunda guerra mundial em farrapos, mas deram uma magnífica sacudida na poeira e uma imensa volta por cima da situação, atingindo níveis de desenvolvimento bastante significativos (não fosse pela crueldade praticada por eles na matança de baleias, de golfinhos e na falta de respeito pela dor da vida animal, eu os acharia a raça mais evoluída da Terra).

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Lamentando profundamente pelo fato de eles terem que passar mais uma vez por uma provação assim tão grande, acabei por sentir a necessidade de olhar para "o meu umbigo" (esta vidinha cotidiana de todos nós). Um umbigo brasileiro, um umbigo acostumado a presenciar algumas tormentas, mas não as naturais e sim as da corrupção onipresente nos diversos níveis do poder público, da Lei de Gerson (já impressa no DNA do cidadão médio), da alienação que varre a mente da população (intoxicada tanto por big mac's quanto por big brothers e por um consumismo deslavado e desenfreado).

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Embora este umbigo não esteja ainda acostumado a ver este tipo de tragédia acontecendo no quintal de casa, acho interessante que ele vá se acostumando à idéia de que já faz certo tempo que Deus pediu cidadania em outros rincões, deixando para trás a terra do samba, suor e cerveja, a terra das palmeiras onde canta o sabiá. Ocorre que um dia antes do terremoto do Japão acontecer, os gráficos do LISS (LIVE INTERNET SEISMIC SERVER, que é um site que mostra ao vivo uma coletânea de dados sísmicos coletados a partir de estações sismográficas instaladas em todo o mundo), mostravam uma muito intensa atividade sísmica global, simultânea, incomum, uma coisa de assustar, pois os monitores situados em terras brasileiras também mostravam atividade constante e preocupante. Algo assim como o planeta se chacoalhando como um cão após o banho, compreendem?

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Para quem não sabe, aí vão alguns dados que a mídia, no geral, não veicula: no dia 02 de março de 2011 um terremoto de 3.2 graus atingiu a cidade de Aliança do Tocantins (TO); no dia 04 de março de 2011 um terremoto de 3.7 graus atingiu a cidade de Estrela do Norte (GO); no dia 05 de março de 2011 um terremoto de 3.2 graus de magnitude atingiu a cidade de Montes Claros (MG). Foram três terremotos em apenas 72 horas, com a mídia em silêncio... (quereriam eles omitir informações desta natureza para não disseminar o pânico?)

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Como eu disse antes: hoje dói no Japão, amanhã talvez doa aqui, na nossa terrinha; no Chile, ainda mais exposto que nós; nos EUA, eternamente à espera do Big One; em qualquer outra parte do famigerado anel de Fogo do Pacífico. O Sol desperta e promete turbulências; a economia mundial vai indo mal das pernas; as safras quebram em todo canto por conta das secas, das enchentes, das nevascas. A situação se complica, meus caros!

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Bem, meu espaço para escrever se acabou por hoje, mas penso que ainda dá para deixar uma pergunta no ar, um algo para se pensar: E AGORA, JOSÉ?
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EDUCANDO SEM VIOLÊNCIA

Estou publicando esta coluna meio atrasadinha, pois já estamos em Março e ela foi escrita em Janeiro. Mas tudo bem, idéias não envelhecem e meu ponto de vista não mudou.

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Janeiro chega ao fim e todos nós, os que trabalhamos na área da Educação, já estamos vibrando na energia da volta às aulas. Alguns, satisfeitos com a prática do magistério, já estão cheios de planos para o ano letivo e se sentem contentes por voltar às salas de aulas; outros muitos, abandonados e sabotados pelo sistema mal ajambrado e equivocado, já andam tensos e temerosos em relação àquilo que enfrentarão no decorrer deste ano. Suportarão o desgaste das eternas batalhas que travam com alunos, direção e comunidade para poderem realmente ensinar? Irão agüentar mais um ano de descaso e desatenção, sobrevivendo dolorosamente ao passar dos dias?


Triste este quadro, não é mesmo? Pintado com as cores fortes da desestruturação da família, dos modismos educacionais, do descarte dos valores primordiais da ética, da gentileza, da boa vontade e do amor fraterno, esta paisagem, nem sempre fácil de enfrentar, é a realidade que espera muitos professores neste ano letivo que se inicia. As coisas poderiam mudar para melhor se alguns valores importantes fossem resgatados pela sociedade, se o sistema deixasse de ser complacente em relação à qualidade por conta das intenções eleitoreiras e se as famílias, renovadas por algum sopro divino e miraculoso, compreendessem a necessidade de reassumir com urgência as rédeas da educação de seus filhos, hoje outorgada a qualquer um que não eles, e pudessem oferecer aos filhos uma educação pautada pela qualidade, pelo amor, pela ética e pela integridade.



Sonhar nunca é demais, pois os sonhos são o combustível dos motores que nos levam às melhores mudanças. Por isso transcrevo abaixo um texto muito bom e inspirador (mas sem autoria) que recolhi na internet. Boa leitura!


O Dr. Arun Gandhi, neto de Mahatma Gandhi e fundador do MK Gandhi Institute, contou a seguinte história sobre a vida sem violência, na forma da habilidade de seus pais, em uma palestra proferida em junho de 2002 na Universidade de Porto Rico. "Eu tinha 16 anos e vivia com meus pais, na instituição que meu avô havia fundado, e que ficava a 18 milhas da cidade de Durban, na África do Sul. Vivíamos no interior, em meio aos canaviais, e não tínhamos vizinhos, por isso minhas irmãs e eu sempre ficávamos entusiasmados com a possibilidade de ir até a cidade para visitar os amigos ou ir ao cinema.



Certo dia meu pai pediu-me que o levasse até a cidade, onde participaria de uma conferência durante o dia todo. Eu fiquei radiante com esta oportunidade. Como íamos até a cidade, minha mãe me deu uma lista de coisas que precisava do supermercado e, como passaríamos o dia todo, meu pai me pediu que tratasse de alguns assuntos pendentes, como levar o carro à oficina. Quando me despedi de meu pai ele me disse: -"Nos vemos aqui, às dezessete horas, e voltaremos para casa juntos".


Depois de cumprir todas as tarefas, fui até o cinema mais próximo. Distraí-me tanto com o filme (um filme duplo de John Wayne) que me esqueci da hora. Quando me dei conta eram dezessete e trinta. Corri até a oficina, peguei o carro e apressei-me a buscar meu pai. Eram quase seis horas. Ele me perguntou ansioso: -"Porque chegou tão tarde?"


Eu me sentia mal pelo ocorrido, e não tive coragem de dizer que estava vendo um filme de John Wayne. Então, lhe disse que o carro não ficara pronto, e que tivera que esperar. O que eu não sabia era que ele já havia telefonado para a oficina. Ao perceber que eu estava mentindo, disse-me: -"Algo não está certo no modo como o tenho criado, porque você não teve a coragem de me dizer a verdade. Vou refletir sobre o que fiz de errado a você. Caminharei as dezoito milhas até nossa casa para pensar sobre isso".


Assim, vestido em suas melhores roupas e calçando sapatos elegantes, começou a caminhar para casa pela estrada de terra sem iluminação. Não pude deixá-lo sozinho. Guiei por cinco horas e meia atrás dele, vendo meu pai sofrer por causa de uma mentira estúpida que eu havia dito.



Decidi ali mesmo que nunca mais mentiria. Muitas vezes me lembro deste episódio e penso: -"Se ele tivesse me castigado da maneira como nós castigamos nossos filhos, será que teria aprendido a lição?" Não, não creio. Teria sofrido o castigo e continuaria fazendo o mesmo. Mas esta ação não-violenta foi tão forte que ficou impressa na memória como se fosse ontem.


Este é o poder da vida sem violência e com AMOR (respeito pelo outro).

terça-feira, 1 de março de 2011

A BAITA BOBAGEM BABACA... E OUTRAS COISINHAS AFINS.

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Há momentos em que eu gostaria de ter os olhos nublados, os ouvidos moucos e o coração blindado.


Não é sempre que me sinto assim, mas de vez em quando a coisa bate, e bate forte.


Eu me sinto assim, por exemplo, quando ouço falar da tal da “Baita Bobagem Babaca” (ou, para os fãs, o BBB, Big Brother Brasil), esta escola de futilidades, de crueldade, de falta de ética e de moralidade. Em tempo, volto a dizer: não sou moralista, não sou puritana, não sou santa, não sou religiosa e nem sou bozinha demais... e mesmo assim considero um imenso desserviço ao país e aos seus cidadãos a veiculação do tal programa em rede nacional, com tanta divulgação enfiada goela abaixo do público que rumina e vegeta diante das TVs.


Fico perplexa com o tanto de atenção que estes anônimos são capazes de atrair, de Norte a Sul do nosso país. O tal programa é como um imã que canaliza olhos, ouvidos e corações para as realidades toscas ali vividas.
Pelos Deuses, será que a vida das pessoas anda assim tão ruim, tão banal e desinteressante a ponto delas preferirem gastar seu tempo olhando na TV o que pessoas estranhas vivenciam do que vivendo suas próprias aventuras, emoções e experiências? Será que os livros perderão de vez esta batalha contra o monstro televisivo, que mata a palavra escrita e ainda gargalha com escárnio diante de um povo emburrecido e mentalmente enfraquecido?


Não, antes que alguém me pergunte, eu não o assisto, mas basta que estejamos vivos para saber do que se passa na tal casa. As notícias quentes sobre os “heróis’ do Pedro estão no jornal, nas revistas, nos ônibus, no elevador, em todo e qualquer canto.
Alguém já viu tal divulgação e tanta festa em torno dos conteúdos educativos, dos assuntos relevantes, daquilo que pode mesmo erigir e edificar ou melhorar as condições de vida da população? Não, nós nunca vimos, e é isto o que mais dói.
Recursos inimagináveis gastos nesta bobagem num país carente de cultura, de formação, de informação séria. Isso sem contar com o fato de que os telefonemas que as pessoas dão, certas de que exercem algum tipo real de poder ao escolherem fulaninho ou fulaninha rendem; à Vênus Platinada, todos os milhões que faltam ao país para que a saúde e a educação aconteçam de forma digna.


E o que estará fazendo o Bial neste programinha merreca, além de enchendo os bolsos de dinheiro e consolidando a sua popularidade? Jornalismo sério, para ele, é coisa do passado... Ah, sim! Uma das coisas que ele faz à perfeição é tentar redefinir este termo, “herói”. É, porque ao se referir aos habitantes daquela casa infame como “heróis” ou ele está redefinindo o termo ou está desmerecendo aqueles que, antes deste evento infeliz chamado BBB, assim foram chamados.


Este país é sério? Claro que não. Se fosse, além de privilegiar conteúdos melhores em todas as mídias, não estaria chorando junto a população do Rio de Janeiro por conta do incêndio que destruiu a tal cidade do samba e sim arregaçando as mangas com seriedade para sanar os efeitos dos deslizamentos de terra na região serrana no mês passado. Não é mesmo impressionante como uma tragédia daquelas, que privou muita gente de tudo o que tinha na vida, em termos materiais e afetivos, pode ser rapidamente nublada nos noticiários por outro evento muito menor, que priva algumas poucas pessoas de alguma diversão carnavalesca, mas que é lamentado às lágrimas, como se fosse o fim do mundo?


É por estas e outras que ocasionalmente eu gostaria de ver menos, escutar menos, entender menos e me aborrecer menos.


Um dos prêmios que recebemos da vida por dilatar nossa visão de mundo, aguçar nossa mente curiosa e questionadora e sensibilizar nossos corações é este, uma dolorosa solidão e um real distanciamento das coisas ditas normais e legais, das realidades que fazem a festa nas vidas dos alienados e adormecidos.


Tenho um amigo professor que diz convictamente que “felicidade é saúde e ignorância”.


Quer definição melhor? Se o cara é saudável, pode tudo, come de tudo e todas que aparecem, pinta e borda e não se preocupa com nada que vá um centímetro além do seu umbigo ou da tela da sua TV (onde heróis de barro correm pela casa do BBB com microfones pendurados na cintura), como é que ele vai ser infeliz? Ele, que acredita nas mentiras públicas, na mídia perversa, que vive mergulhado na tríade cerveja com churrasco-futebol-sexo, que não tem a menor noção de que há uma realidade paralela muito mais elevada e interessante esperando apenas pelo seu interesse para se mostrar, vai ser infeliz porque?


Na próxima encarnação eu quero nascer (e permanecer) assim: burra, bonita e muito saudável. Claro que daí então eu não estarei aqui, pretensiosamente escrevendo sobre meus perrengues para vocês, Mas tenho certeza de que sempre haverá quem o faça (quiçá com mais talento e brilhantismo do que eu!)



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A INDIFERENÇA HUMANA.

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A cultura da indiferença é uma cultura cruel.

E isso é assim apesar das campanhas religiosas, de alguns comerciais de TV sensíveis, dos muitos livros já escritos sobre o tema , das campanhas sociais e alguns bem intencionados nos exortarem a dirigirmos um olhar amoroso para o nosso semelhante, a estendermos as mãos em auxílio aos mais necessitados, a nos doarmos em favor do outro.

Eu conheço esta realidade muito bem porque, por conta dela, eu já tomei muitas atitudes em favor de outros seres humanos, de animais, de grupos necessitados de auxilio e me intrometi em várias realidades que não as minhas tentando ser útil.

Adotei crianças, recolhi animais abandonados, fui voluntária em n+1 ONGs e comunidades religiosas, dirigi voluntariamente instituições filantrópicas... e isso tudo pelo mero prazer de facilitar e tornar mais bela a experiência de vida dos outros.

Mas o que a vida ensina no cotidiano aos puxões de orelhas, na crua experiência dos dias, é algo bem diferente. A prática da vida no dia-a-dia, a violência das ruas, a lei de Gerson reinante em todo e qualquer canto (filas, trânsito, restaurantes e etc.) e a competitividade em todas as esferas sociais nos dão tapas na cara nos ensinando, por exemplo, a desviar os olhos quando vemos um homem bêbado, batido pela vida e reduzido a nada, jogado numa calçada qualquer, visto que “ele bebe porque quer”; ensinam-nos a fechar bem fechadinho o vidro nos semáforos, porque as crianças que vendem doces nas paradas dos carros são trombadinhas em potencial; nos ensinam a ignorar a presença do vizinho, porque além de a televisão ser bem mais interessante do que ele, ela nunca nos pede favores, apenas nos vende ilusões e mentiras (o que é muito mais cômodo). E é por isso, porque a vida é uma escola cruel, dura e fria, que acontecem coisas como a relatada a seguir.

O corpo de uma idosa portuguesa foi encontrado, na cozinha de seu apartamento em uma vila a 25 km de Lisboa, Portugal, quase nove anos depois do registro de seu desaparecimento. A descoberta ocorreu na terça-feira (08/02), dia em que ela seria despejada por atrasar a prestação do imóvel. “Foi uma vergonha para o país. Se não fossem as Finanças (órgão responsável pelo despejo) quererem o dinheiro deles, o corpo continuaria lá”, diz Aida Martins, de 82 anos. Foi ela quem, em agosto de 2002, avisou as autoridades locais sobre o desaparecimento da vizinha, Augusta Martinho, que completaria 96 anos neste sábado, dia 12.


“Eu olhava para a janela dela, que tinha luz acesa todos os dias. Até que um dia a luz apagou-se".
A aposentadoria havia sido cortada em 2003. Aida enviou de volta os recibos que se amontoavam na caixa de correio de Augusta. A energia também foi cortada. “Quando eu ia trabalhar, olhava para a janela dela, que tinha a luz acesa todos os dias. Até que um dia a luz apagou-se”, conta a aposentada Fernanda Borges, de 55 anos, também moradora do prédio.


Após localizar um parente pela lista telefônica, como orientada, Aida afirma ter voltado à Guarda Nacional Republicana para abrir o inquérito. “Localizaram uma foto de quando ela era professora em outra cidade e me perguntaram se eu a reconhecia. Disse que sim", afirma Aida, que foi orientada a aguardar. Os pedidos de arrombamento não adiantaram, conta a idosa. “Eu disse: o condomínio paga a fechadura."

Na terça-feira, os novos proprietários, um funcionário das Finanças e um chaveiro chegaram para tomar posse. A porta de entrada já havia sido aberta, mas o corpo de Augusta impedia a entrada na cozinha. Os bombeiros foram chamados. “Havia também o cadáver de um cão e de alguns pássaros, que deviam fazer companhia para ela, mas nunca houve cheiro algum”, diz Luís Pimentel, comandante dos Bombeiros de Agualva-Cacém, que atenderam à ocorrência. Em 43 anos de profissão, diz ele, foi a primeira vez que se deparou com um caso como esses.

“Ela era muito amiga dos animais. Ralhava com ela algumas vezes, pois dava comida aos gatos aqui na rua e atraía ratos”, diz Júlio Luís, de 60 anos, dono de um pequeno café ao pé do prédio da vítima. “Ela era pouco sociável. Só passava para jogar o lixo fora.”

Apesar de ser uma das primeiras moradoras do prédio, Augusta era reservada, segundo os vizinhos. “Era só bom dia, boa noite na escada”, diz a aposentada Laurinda Cardoso, de 77 anos, que mora no andar de baixo ao de Aida. “Ela só tocava a campainha para pagar o condomínio”. O marido havia morrido alguns anos atrás. Ela não tinha família, não estava inscrita em nenhuma associação de terceira idade. “Sabíamos que ela morava ali, mas não mantínhamos contato”, diz Felipe Santos, da Junta de Freguesia (semelhante, no Brasil, à subprefeitura) de Rio do Mouro. “Ninguém consegue explicar como isso ocorreu. Mas ocorreu”.

E é assim que encerro a coluna de hoje, com uma minúscula oração:

-“Dona Augusta, neste momento eu peço ardentemente "Àquele que governa os Universos" que a senhora encontre pessoas boas e amáveis, carinhosas e ternas aí onde a senhora está agora e que isto seja suficiente para que a senhora esqueça os tristes momentos de isolamento e a morte solitária que teve que vivenciar. Amém.”

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