sábado, 9 de maio de 2009

FELICIDADE DE PAPEL, LINHA E ARROZ.

.
.
(ao meu irmão Enio)

Elas sempre foram muitas e nos tempos de férias elas são ainda mais abundantes. Eu as vejo sempre coloridas, freneticamente voando de um lado para o outro, subindo aos pulos ou descendo e arrastando atrás de si muitos metros de cauda de papel filetado. São alegres e me remetem à infância, tempo em que eu presenciava meu irmão, cinco anos mais velho e artesão de primeira linha, produzir pernas de pau altíssimas (eu tinha medo quando ele as usava, pois ele me parecia monstruoso em cima daquilo), carrinhos de rolimã cheios de recursos (como freio e direção) e as famosas pipas.

Pipas, quadrados, arraias, maranhões, capuchetas. Os nomes eram muitos, mas o que importava mesmo é que elas eram bonitas, coloridas e meio mágicas: bastava colocar linha (linha dez, por favor, nunca nada mais fino!) e soltar “no vento”. E elas voavam, iam longe, aonde eu imaginava que eu mesma jamais poderia ir.

Uma das etapas mais elaboradas da produção de pipas era a fabricação do cerol. Com pedaços de garrafas quebradas era feito o vidro moído às marteladas, dentro de um pano de prato ou camiseta meio velha (para desespero da minha mãe). Ficava um pozinho muito fino, que ele misturava com cola de madeira (uma meleca feita através do derretimento de uma placa marrom, dura, de cola seca em água quente), uma coisa que fedia tremendamente e empestava a casa toda. De nada adiantavam os rogos de minha mãe para que ele fosse fazer aquilo “nos quintos”: era lá mesmo, em casa, que ele perpetrava suas criações.

Na montagem do esqueleto de madeira ele era mestre: suas obras pareciam sair das mãos de um engenheiro adolescente, pois elas quase nunca ficavam “pensas” nem “embicando” sozinhas. De vez em quando faltava cola para unir os papéis de seda coloridos (quanto mais recortes coloridos melhor, mais valiosa a pipa), e ele usava arroz cozido, vindo diretamente das panelas da minha mãe. Caso vocês não saibam, um grão de arroz cozido, esmagado entre dois pedaços de papel, age como uma cola bem razoável.

Se acontecesse de alguma das pipas ficar “fora de esquadro”, se houvesse algum desequilíbrio final, ele imediatamente o corrigia com uma imensa rabiola, feita segundo os mais rígidos padrões: no começo, o papel era amarrado à linha em espaços bem próximos, que iam se alargando mais e mais até o comprimento desejado. Esta era a única etapa do feitio em que eu era autorizada a ajudar, talvez porque fosse a menos interessante e a mais enfadonha, e eu agarrava a oportunidade com as duas mãos, cortando e amarrando freneticamente os papeizinhos ao longo dos muitos metros de linha (havia também uma carretilha para enrolar a linha, feita de lata de óleo e pedaços da madeira e arame como manivelas, uma verdadeira maravilha da engenharia de utilidades....mas isso fica para uma próxima crõnica).

Com a pipa pronta e em mãos, ele seguia para o campo de batalha como um soldado orgulhoso. Punha a pipa no ar e começava a procurar alguma vítima para capturar, atento aos inimigos que se aproximavam com suas linhas também cortantes. E a batalha começava, com investidas e recuos memoráveis, recheada de emoções. Quando alguém conseguia capturar uma pipa inimiga a cena era quase pungente: a criatura cativa, presa à linha de seu algoz, girava loucamente sobre si mesma e, sem outro recurso, acabava por descer até as mãos do seu captor, para ser novamente levada às alturas, em outra linha, pelas mãos de seu novo proprietário.

Eram lutas de vida e morte, onde o instinto primal de homens jovens era treinado, como numa idade da pedra moderna, de maneira socialmente aceita: sem sangue, sem embates corporais, sem violência física. A tocaia, a caça, a apropriação, a declaração de superioridade sobre outro homem, tudo vinha á tona soberbamente naquelas tardes mornas, embora nem tivéssemos consciência disso.

Não havia então (por vários e vários motivos, imagino eu) os acidentes que hoje vitimam os motociclistas, e raríssimas eram as ocasiões em que alguém se feria com o cerol. Tudo se resumia ao lúdico, ao aventureiro, ao treino das habilidades manuais. Tudo era apenas brincadeira, alegria, tentativa e erro, experiências para trocar depois em conversas intermináveis.

Naquele tempo a linha, as varetas, o papel e a cola de arroz eram símbolos de felicidade e nós nem sabíamos disso.
.
.

SOBRE MENINAS E CANÇÕES

.
.
(dedicada ao coral Mensageiro da Amizade)

Hoje é quarta-feira, dia de escrever a coluna para o jornal de amanhã. Estou tremendamente resfriada (os olhos lacrimejam, o nariz arde, o ouvido e a garganta doem) e isso não me parece um bom ponto de partida para escrever, já que geralmente fico mal-humorada, chata e pessimista quando gripada. Porém, como esta coluna é um algo que eu desejo que seja um ponto positivo no dia dos leitores, trato de botar um cabresto na mente indisciplinada, trancafiando no porão da alma a rabugice e o mau-humor. E me ponho a tentar visualizar as coisas boas da minha vida, aquelas mais legaizinhas e amenas, as que fazem meus dias valerem a pena.

E então me recordo do ensaio do coral de ontem, quando mais uma vez estive com minhas meninas maravilhosas para ensaiar músicas variadas para a missa do dia das mães. Sim, eu dirijo um coral de vozes femininas. De vozes femininas por mera falta de quorum masculino, diga-se de passagem. Taí, esta é uma pergunta que se impõem (responda quem puder!): porque é que em todos os corais as vozes masculinas são escassas? Corais sofrem sempre de falta crônica de homens, isso é fato, e eu me pergunto se isso é devido à vergonha de cantar ou à falta de sensibilidade para o belo. Não sei, não sei... só sei que quem canta os males espanta, que quem canta reza duas vezes e que cantar mantém a alma alegre, o coração feliz e a mente jovem. Pobres homens, nem sabem o que estão perdendo!

Mas deixem-me falar um pouco das minhas meninas: elas vêm de vários cantos da cidade para compartilharem com amor um canto em comum, são muito dedicadas, ensaiando com afinco, sempre atentas às minhas indicações, dando o melhor de si em cada nota e em cada frase musical. Das modas de viola às musicas em latim, elas seguem persistentes e alegres, saltando os obstáculos, superando as dificuldades e fazendo com carinho o trabalho paciente de construir, com os sons de suas vozes, as tramas do tecido musical que irá alegrar e sensibilizar os ouvidos de quem as prestigiar com sua presença.

Como todas as meninas, elas têm obrigações caseiras: cuidam dos parentes, fazem o serviço de casa, fazem compras e mantém a vida andando, sempre nos trilhos. De vez em quando alguma delas falta ou se atrasa, vindo logo pedir desculpas (como se isso fosse necessário, como se eu não soubesse que viver é imprevisível, que a vida nos brinda todos os dias com o bom e o mau, com o fácil e o difícil, com a alegria e com a tristeza). Não, queridas meninas, não é necessário explicar nem justificar: eu sei que todas cantam por amor. E também sei que o que se faz por amor a gente só deixa de fazer quando é absolutamente inevitável, certo?

Elas também são vaidosas, como convém a uma menina: aparecem de vez em quando de chapéu, de lencinhos aqui e ali, de saias e blusas bonitas, baton vermelho ou cor-de-rosa e cabelos sempre arrumadinhos. Roupas coloridas, tudo sempre combinando.

O que mais encanta nelas é que a alegria que elas ostentam em nossos encontros é perene, resistente, pois apesar dos percalços da vida nenhuma delas é amarga ou triste, cinzenta: não, são leves como plumas, são simpáticas e acolhedoras. E olhem que isso não é nada fácil para quem já viveu o que elas viveram: criaram filhos, netos, talvez bisnetos. Já perderam os pais há anos, perderam irmãos, maridos, algumas perderam filhos. Passaram pelas perdas que a vida impõe a todos nós, mas não perderam o que havia de melhor em si: a vontade e a alegria de viver. E mais do que apenas viver: viver bem, produzindo beleza, amizade e alegria aos sessenta, setenta, oitenta ou noventa anos de idade.

Minhas meninas têm muitos nomes: Tereza, Orlanda, Maria, Darci, Aparecida, Dione, Clarinda, Francisca, Nair, Irene... são muitas meninas e muitos nomes, não dá para colocar todos aqui. E esses nomes, se tudo correr bem, serão ainda mais numerosos no futuro.

Meninas queridas, a vocês eu deixo meu abraço mais amoroso. E a você, leitor, eu desejo a sorte de um dia poder encontrá-las num palco qualquer, de poder ter a oportunidade de partilhar com essas meninas especiais um pouco da beleza que elas são capazes de produzir.
.
.

NAMASTÊ

.
.
Hoje cedo eu acordei indisposta, com náuseas, suando frio. Coisa simples de entender: há dois dias meus filhos estavam com virose e eu, que os atendi e tratei, provavelmente me contaminei e acabei por apresentar os sintomas. Nada sério, na verdade, mas o fato acabou por me impedir de ir à escola lecionar, me levando também ao médico.

E nas quase duas horas em que aguardei pelo atendimento, muito gentil por sinal, visto que eu não previ que adoeceria e, portanto, não tinha consulta marcada (obrigada mais uma vez, Dr. Paulo Pereira!) pude constatar que sala de espera é tudo de bom para quem gosta de observar a vida e as pessoas, não para criticar ou julgar, apenas para reconhecê-las semelhantes, humanas, iguais.

Deixando de lado as revistas da mesinha, passei a olhar ao redor, absorvendo com os olhos a essência daquelas pessoas estranhas que me cercavam no momento. Uma moça bem vestida e apressada chegou, entregou uns papéis à recepcionista, ficou cinco minutos aguardando e acabou por pedir à atendente que telefonasse quando estivesse perto do nome dela ser chamado, pois ela tinha muito a fazer. E foi-se embora, retornando apenas quando eu já estava saindo.

Outra senhora, sentando-se ao meu lado, perguntou-me meio insegura se eu conhecia o profissional com o qual ela iria se consultar. Eu lhe disse que sim, tecendo bons comentários a respeito dele para tranquiza-la (nada além da verdade, diga-se de passagem).

Uma jovem mãe, também à espera da sua consulta, fazia prodígios para entreter a filhinha de um ano e meio, ávida por alguma brincadeira ou distração que pudesse alegrá-la, uma coisa difícil de encontrar naquele ambiente tão limpo, tão despojado e preparado apenas para adultos.

Um senhor já grisalho, impaciente, olhava o relógio de minuto em minuto, suspirando aliviado quando seu médico chegou, entrando apressado no consultório. Fiquei imaginando comigo mesma o que ele teria de tão importante a fazer a ponto de ficar tão agitado.

Outra mãe chegou, já no fim da tarde, conduzindo pela mão um garotinho de uns dez anos de idade, que aparentava sofrer de algum pequenino problema motor. Seu olhar e suas atitudes, pacientes e desveladas, sugeriam um amor pleno e incondicional ao filho, talvez fragilizado pelo aparente problema neurológico.

Enquanto tudo isso acontecia e as pessoas chegavam, iam embora, entravam ou saiam dos consultórios, as secretárias atendiam a todos sem perder a calma nem a concentração, agendando consultas e respondendo às dúvidas dos clientes com profissionalismo e correção.

Enfim, na tarde de hoje, o microcosmo humano daquela sala de espera, rico e variado, exibiu um breve panorama das emoções humanas, todas tão conhecidas por todos nós: o medo, a alegria, a ansiedade, o amor, a impaciência e outros tantos estados de espírito que apenas pude pressentir nesta breve observação.

Isso me leva à conclusão que, sem dúvida alguma, tudo aquilo que nos une e iguala, como seres humanos, é bem maior e mais válido do que aquilo o que nos separa. Ou seja: o desejo de ser feliz e de prosperar que a todos nós anima, os medos e receios que humanamente compartilhamos, a esperança que teimamos em manter viva e o amor de que somos capazes, são muito mais significativos como fatores de união e amor ao próximo do que as pequenas diferenças que ostentamos de credo, cor, raça, sexualidade ou de ideais o são como fatores de desarmonia, violência ou guerra.

Quisera eu que todos pudéssemos ver isso com a clareza necessária para abandonarmos de vez os julgamentos, a violência, a discriminação e a opressão, vendo no outro apenas um reflexo de nós mesmos. E assim me lembro que a saudação tradicional dos induístas e yogues, o “Namastê” tem exatamente este sentido, ao agregar em si a idéia: “O Deus que habita em mim saúda o Deus que habita em ti”.

Namastê a todos vocês.

....

MUDANÇAS

.
.
Eis aqui uma constatação tão óbvia quanto simples: todos nós estamos sujeitos a muitas mudanças ao longo da vida. Mudam os amigos, mudam os cortes de cabelo; muda a moda, mudam as gírias; mudam as fases da Lua, mudam os governos e os dirigentes políticos; mudam os artistas das novelas, mudam os amores e os desafetos. Mudanças, mudanças... não sei não, mas penso que toda mudança, seja lá em que nível for, é incomoda, assustadora e preocupante. E os seres humanos são, em sua grande maioria, ávidos por estabilidade, pela mesmice, pela segurança ilusória que nos dá encontrar as mesmas coisas, as mesmas pessoas e a mesma rotina todos os dias.

O antigo pede apenas hábito, paciência, repetição e determinação; já o novo exige adaptação, exige flexibilidade, solicita aceitação e espírito de aventura. Abrir mão do que já foi importante, deixar ir algo que já não nos serve mais, abandonar posturas, objetos, relações desgastadas ou sonhos hoje inúteis é doloroso, é aventuresco, é incerto... deixar ir embora o conhecido para abrir as portas ao novo é tudo que nós, humanos, não sabemos encarar sem tremer na base. Mas há aqueles inevitáveis momentos em que o antigo pesa como chumbo, incomoda, irrita, entristece; há fases na vida em que mudar é imperativo, necessário, inevitável mesmo, e o medo e a preguiça são trancafiados nos porões da mente e pulamos resolutamente no vazio do novo, ansiosos e esperançosos.

E esse foi meu caso nesta semana: eu precisei mudar de casa. Nada de novo para mim, sou campeã neste tipo de coisa: já perdi a conta das casas em que morei nestes meus quase cinqüenta anos. Provável herança do meu pai, que não sabia parar por muito tempo no mesmo lugar, esta necessidade de mudar me persegue como um fantasma, mantendo-me sempre às braçadas por sobre as ondas da vida. Penso que todo mundo tem que ter raízes e asas, mas as minhas raízes são curtas demais enquanto que as asas são grandiosas e ávidas por vôos... preciso equilibrar isso, certo?

Verdade seja dita: desta vez não me mudei por mera vontade de mudar, mas por necessidade mesmo. Vizinhos barulhentos, incômodos e invasivos, somados a uma casa inadequada, me levaram a sair do comodismo para procurar um lugar melhor para viver. E então me vi novamente envolvida naquele torvelinho (odioso torvelinho, diga-se de passagem!) de caixas, sacos de roupa e objetos mil. Livros incontáveis, muitos cds, centenas de dvds... e outras coisinhas banais que eu não me lembrava mais que existiam. Encontrei muito lixo, tranqueiras e coisas inúteis, mas (que bom!) encontrei também gratas lembranças, subitamente resgatadas pelas operações de empacotamento e desempacotamento. Fotos dos meus filhos pequeninos em festas de aniversários, reuniões de amigos e passagens de ano; certificados de “melhor mãe do ano”, carinhosamente assinados pela letra trêmula dos pequenos; cartões de aniversário engraçadinhos, fazendo piadas com a passagem dos anos; trabalhinhos escolares com mãozinhas decalcadas em guache; cartinhas antigas que rememoram momentos divertidos e emocionantes da vida familiar. Memórias visuais que vêm para remexer o fundo do ser, para ressuscitar sentimentos semimortos, para fazer viver novamente por alguns momentos o que já passou, mas deixou saudades.

Admito que estou fisicamente muito cansada de separar coisas para jogar fora ou para doar; estou exausta de limpar, faxinar, desempacotar e guardar coisas que parecem não acabar nunca; estou totalmente dolorida (mentira, as pálpebras e a língua não doem!) e absolutamente esgotada com o trabalho duro que isso tudo dá, mas minha alma está feliz: além de inaugurar uma nova fase na vida (torçam por mim para que ela seja boa!), eu encontrei em meio a este lufa-lufa muitas coisas legais nas minhas caixinhas de fotos, documentos e guardados: encontrei alguns pedacinhos de amor que eu adorei rever e que, de agora em diante, visitarei com mais frequência, sem esperar que outra catástrofe pessoal do tipo “mudança” me chacoalhe para que eu as resgate.
.
.

QUANTIDADE, VELOCIDADE E UMA OU OUTRA BARBARIDADE.

.
.
Tenho saudades do tempo em que gente era gente: gente, pessoa, com olhos, boca, rosto, sentimentos e coração. Todos se conheciam pelos nomes, sabiam datas de aniversário e cultivavam o encontro com o outro como um algo precioso, uma oportunidade a compartilhar sempre que possível. Talvez fosse um tempo em que o rolo compressor da velocidade não atropelasse a todos e a tudo; um tempo no qual a quantidade de pessoas aglutinadas em torno de uma realidade qualquer não era tão grande. Talvez fosse um tempo em que havia menos pessoas em nossas vidas, mas as que haviam mereciam de nós toda consideração e afeto, mereciam mais atenção e respeito.


Eu me preocupo bastante e acho absurdos os índices atuais de crescimento demográfico (principalmente quando o planeta adoece gravemente, prometendo medidas regeneradoras cruéis em busca de seu reequilíbrio), mas entendo que a população cresça a níveis alarmantes todos os anos no mundo inteiro. Afinal, uns 90% das pessoas que decidem tornar-se pais ou mães nunca parou para pensar nas profundas implicações que cercam a manutenção digna de cada nova vida, na imensa responsabilidade que cada novo ser representa (ou ao menos deveria representar) para seus pais, para a sociedade e para o planeta. Eu, ao menos, tento compreender a necessidade emocional do casal que decide ter filhos “para vivenciar a maternidade e a paternidade”, como se ao novo ser que por aí vem fossem suficientes a curiosidade e o desejo meio egoísta desses dois para ter garantida uma vida decente e digna.


Mas não entendo a razão deste crescimento populacional não ser acompanhado por um desenvolvimento efetivo nos recursos materiais e humanos necessários ao suporte deste acúmulo de vidas. Não, o crescimento do entorno não prospera na medida em que crescem as populações: sempre há médicos faltando, escolas faltando, empregos faltando, espaço faltando, comida faltando, moradias faltando, ética faltando. Como diria o caipira (ainda há caipiras?): “-É, cumpadi... é uma vida de fartura: farta tudo”!


É verdade que existem áreas em que algo sobra, mas essa sobra, em geral, não me parece muito promissora. Sobra TV, falta cultura; sobram revistas de moda, fofocas ou novelas, falta boa literatura; sobra sexo, falta amor; sobra cerveja, falta convívio familiar; sobra futebol, festa e balada, falta compromisso com a realidade; sobram shopping centers, falta consumo consciente; sobra religião, falta integridade; sobram namorados e transas, falta afeto e respeito; sobram amizades instantâneas, faltam alma e coração nas relações pessoais; sobra assistencialismo por parte do governo, falta responsabilidade familiar em relação à educação e gestão dos próprios filhos.


Enquanto o planeta doente, já febril e superlotado, pede socorro, a população cresce desmedidamente e os governos fazem apenas nada para desestimular essa loucura. Ou os governos estão cegos ou apenas se acomodam, pois mexer com isso é por a mão em vespeiro, é um tipo de suicídio político. Aliás, aos que vivem salvaguardados pelo poder, o que importam as dores alheias?


E o Papa, num arroubo quixotesco, investe contra os moinhos de vento da carne na África, mantendo a proibição do uso da camisinha amparado por um discurso antigo, para mim extremamente discutível e ambíguo. Baseado em escrituras que, se tomadas ao pé da letra, sem reflexão e considerações mais aprofundadas podem parecer um tanto descabidas, ele proíbe aos africanos o uso dos preservativos, sem reconhecer que nascer ali já é quase uma sentença de morte cruel e dolorosa, não uma benção divina dos céus. Será que ele compreende que, com raríssimas exceções, nascer na África hoje é estar, desde a primeira respiração, condenado a morrer brutalmente? Diariamente, adultos e crianças morrem de fome, à míngua; outros, nas brutais disputas de poder, nas guerras civis; outros tantos de AIDS, que lá prolifera livremente. O resto do mundo se cala, ignora, faz de conta que não é com ele, mas a dor existe, o sofrimento é real e é cruel. Mas a proibição da camisinha, última barreira contra a disseminação da AIDS, só irá melhorar este quadro, certo?


Porém, a esperança permanece: em meio a tudo isso há ainda algumas pessoas que protestam. Protestam, perplexas com essa veloz impessoalidade, com essa coisificação do ser humano, gerada pelo número excessivo de vidas sobre o planeta. Vidas banalizadas exatamente pela sua quantidade grandiosa (quando se tem muito de uma coisa, ela acaba por ter seu valor diminuído). Pessoas protestam, como o meu querido Luiz Fernando Veríssimo a seguir:


“Nesta altura da vida já não sei mais quem sou. Vejam só que dilema: na ficha da loja sou CLIENTE; no restaurante FREGUÊS; quando alugo uma casa, INQUILINO; na condução, PASSAGEIRO; nos correios, REMETENTE; no supermercado, CONSUMIDOR. Para a Receita Federal, CONTRIBUINTE; se vendo algo importado, CONTRABANDISTA. Se revendo algo, sou MUAMBEIRO; se o carnê está com o prazo vencido, INADIMPLENTE; se não pago impostos, SONEGADOR. Para votar ELEITOR, mas em comícios, MASSA. Em viagens, TURISTA, na rua, caminhando, PEDESTRE; se sou atropelado, ACIDENTADO. No hospital, PACIENTE; nos jornais viro VÍTIMA. Se compro um livro, LEITOR; se ouço rádio, OUVINTE. Para o Ibope, ESPECTADOR; para apresentador de televisão, TELESPECTADOR; no campo de futebol, TORCEDOR. Se sou tricolor, SOFREDOR. Agora, já virei GALERA. (se trabalho na CHESF, sou COLABORADOR). E, quando morrer, uns dirão FINADO, outros DEFUNTO, para outros, EXTINTO, para o povão PRESUNTO. Em certos círculos espiritualistas serei DESENCARNADO; evangélicos dirão que fui ARREBATADO. E o pior de tudo é que para todo governante sou apenas um IMBECIL!!! E pensar que um dia já fui mais EU”.
.