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(ao meu irmão Enio)
Elas sempre foram muitas e nos tempos de férias elas são ainda mais abundantes. Eu as vejo sempre coloridas, freneticamente voando de um lado para o outro, subindo aos pulos ou descendo e arrastando atrás de si muitos metros de cauda de papel filetado. São alegres e me remetem à infância, tempo em que eu presenciava meu irmão, cinco anos mais velho e artesão de primeira linha, produzir pernas de pau altíssimas (eu tinha medo quando ele as usava, pois ele me parecia monstruoso em cima daquilo), carrinhos de rolimã cheios de recursos (como freio e direção) e as famosas pipas.
Pipas, quadrados, arraias, maranhões, capuchetas. Os nomes eram muitos, mas o que importava mesmo é que elas eram bonitas, coloridas e meio mágicas: bastava colocar linha (linha dez, por favor, nunca nada mais fino!) e soltar “no vento”. E elas voavam, iam longe, aonde eu imaginava que eu mesma jamais poderia ir.
Uma das etapas mais elaboradas da produção de pipas era a fabricação do cerol. Com pedaços de garrafas quebradas era feito o vidro moído às marteladas, dentro de um pano de prato ou camiseta meio velha (para desespero da minha mãe). Ficava um pozinho muito fino, que ele misturava com cola de madeira (uma meleca feita através do derretimento de uma placa marrom, dura, de cola seca em água quente), uma coisa que fedia tremendamente e empestava a casa toda. De nada adiantavam os rogos de minha mãe para que ele fosse fazer aquilo “nos quintos”: era lá mesmo, em casa, que ele perpetrava suas criações.
Na montagem do esqueleto de madeira ele era mestre: suas obras pareciam sair das mãos de um engenheiro adolescente, pois elas quase nunca ficavam “pensas” nem “embicando” sozinhas. De vez em quando faltava cola para unir os papéis de seda coloridos (quanto mais recortes coloridos melhor, mais valiosa a pipa), e ele usava arroz cozido, vindo diretamente das panelas da minha mãe. Caso vocês não saibam, um grão de arroz cozido, esmagado entre dois pedaços de papel, age como uma cola bem razoável.
Se acontecesse de alguma das pipas ficar “fora de esquadro”, se houvesse algum desequilíbrio final, ele imediatamente o corrigia com uma imensa rabiola, feita segundo os mais rígidos padrões: no começo, o papel era amarrado à linha em espaços bem próximos, que iam se alargando mais e mais até o comprimento desejado. Esta era a única etapa do feitio em que eu era autorizada a ajudar, talvez porque fosse a menos interessante e a mais enfadonha, e eu agarrava a oportunidade com as duas mãos, cortando e amarrando freneticamente os papeizinhos ao longo dos muitos metros de linha (havia também uma carretilha para enrolar a linha, feita de lata de óleo e pedaços da madeira e arame como manivelas, uma verdadeira maravilha da engenharia de utilidades....mas isso fica para uma próxima crõnica).
Com a pipa pronta e em mãos, ele seguia para o campo de batalha como um soldado orgulhoso. Punha a pipa no ar e começava a procurar alguma vítima para capturar, atento aos inimigos que se aproximavam com suas linhas também cortantes. E a batalha começava, com investidas e recuos memoráveis, recheada de emoções. Quando alguém conseguia capturar uma pipa inimiga a cena era quase pungente: a criatura cativa, presa à linha de seu algoz, girava loucamente sobre si mesma e, sem outro recurso, acabava por descer até as mãos do seu captor, para ser novamente levada às alturas, em outra linha, pelas mãos de seu novo proprietário.
Eram lutas de vida e morte, onde o instinto primal de homens jovens era treinado, como numa idade da pedra moderna, de maneira socialmente aceita: sem sangue, sem embates corporais, sem violência física. A tocaia, a caça, a apropriação, a declaração de superioridade sobre outro homem, tudo vinha á tona soberbamente naquelas tardes mornas, embora nem tivéssemos consciência disso.
Não havia então (por vários e vários motivos, imagino eu) os acidentes que hoje vitimam os motociclistas, e raríssimas eram as ocasiões em que alguém se feria com o cerol. Tudo se resumia ao lúdico, ao aventureiro, ao treino das habilidades manuais. Tudo era apenas brincadeira, alegria, tentativa e erro, experiências para trocar depois em conversas intermináveis.
Naquele tempo a linha, as varetas, o papel e a cola de arroz eram símbolos de felicidade e nós nem sabíamos disso.
Elas sempre foram muitas e nos tempos de férias elas são ainda mais abundantes. Eu as vejo sempre coloridas, freneticamente voando de um lado para o outro, subindo aos pulos ou descendo e arrastando atrás de si muitos metros de cauda de papel filetado. São alegres e me remetem à infância, tempo em que eu presenciava meu irmão, cinco anos mais velho e artesão de primeira linha, produzir pernas de pau altíssimas (eu tinha medo quando ele as usava, pois ele me parecia monstruoso em cima daquilo), carrinhos de rolimã cheios de recursos (como freio e direção) e as famosas pipas.
Pipas, quadrados, arraias, maranhões, capuchetas. Os nomes eram muitos, mas o que importava mesmo é que elas eram bonitas, coloridas e meio mágicas: bastava colocar linha (linha dez, por favor, nunca nada mais fino!) e soltar “no vento”. E elas voavam, iam longe, aonde eu imaginava que eu mesma jamais poderia ir.
Uma das etapas mais elaboradas da produção de pipas era a fabricação do cerol. Com pedaços de garrafas quebradas era feito o vidro moído às marteladas, dentro de um pano de prato ou camiseta meio velha (para desespero da minha mãe). Ficava um pozinho muito fino, que ele misturava com cola de madeira (uma meleca feita através do derretimento de uma placa marrom, dura, de cola seca em água quente), uma coisa que fedia tremendamente e empestava a casa toda. De nada adiantavam os rogos de minha mãe para que ele fosse fazer aquilo “nos quintos”: era lá mesmo, em casa, que ele perpetrava suas criações.
Na montagem do esqueleto de madeira ele era mestre: suas obras pareciam sair das mãos de um engenheiro adolescente, pois elas quase nunca ficavam “pensas” nem “embicando” sozinhas. De vez em quando faltava cola para unir os papéis de seda coloridos (quanto mais recortes coloridos melhor, mais valiosa a pipa), e ele usava arroz cozido, vindo diretamente das panelas da minha mãe. Caso vocês não saibam, um grão de arroz cozido, esmagado entre dois pedaços de papel, age como uma cola bem razoável.
Se acontecesse de alguma das pipas ficar “fora de esquadro”, se houvesse algum desequilíbrio final, ele imediatamente o corrigia com uma imensa rabiola, feita segundo os mais rígidos padrões: no começo, o papel era amarrado à linha em espaços bem próximos, que iam se alargando mais e mais até o comprimento desejado. Esta era a única etapa do feitio em que eu era autorizada a ajudar, talvez porque fosse a menos interessante e a mais enfadonha, e eu agarrava a oportunidade com as duas mãos, cortando e amarrando freneticamente os papeizinhos ao longo dos muitos metros de linha (havia também uma carretilha para enrolar a linha, feita de lata de óleo e pedaços da madeira e arame como manivelas, uma verdadeira maravilha da engenharia de utilidades....mas isso fica para uma próxima crõnica).
Com a pipa pronta e em mãos, ele seguia para o campo de batalha como um soldado orgulhoso. Punha a pipa no ar e começava a procurar alguma vítima para capturar, atento aos inimigos que se aproximavam com suas linhas também cortantes. E a batalha começava, com investidas e recuos memoráveis, recheada de emoções. Quando alguém conseguia capturar uma pipa inimiga a cena era quase pungente: a criatura cativa, presa à linha de seu algoz, girava loucamente sobre si mesma e, sem outro recurso, acabava por descer até as mãos do seu captor, para ser novamente levada às alturas, em outra linha, pelas mãos de seu novo proprietário.
Eram lutas de vida e morte, onde o instinto primal de homens jovens era treinado, como numa idade da pedra moderna, de maneira socialmente aceita: sem sangue, sem embates corporais, sem violência física. A tocaia, a caça, a apropriação, a declaração de superioridade sobre outro homem, tudo vinha á tona soberbamente naquelas tardes mornas, embora nem tivéssemos consciência disso.
Não havia então (por vários e vários motivos, imagino eu) os acidentes que hoje vitimam os motociclistas, e raríssimas eram as ocasiões em que alguém se feria com o cerol. Tudo se resumia ao lúdico, ao aventureiro, ao treino das habilidades manuais. Tudo era apenas brincadeira, alegria, tentativa e erro, experiências para trocar depois em conversas intermináveis.
Naquele tempo a linha, as varetas, o papel e a cola de arroz eram símbolos de felicidade e nós nem sabíamos disso.
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