quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A EDUCAÇÃO DO OLHAR

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“Os olhos são as janelas da alma”. E o que é mesmo que essa nossa alma inquieta tanto espia, estendendo sem parar a sua curiosidade para fora de nós?

Olhamos as pessoas, seus carros reluzentes, suas roupas mais ou menos caras, seus corpos mais ou menos magros; olhamos os outdoors coloridos, cheios de promessas vãs de felicidade; olhamos os semáforos eternamente fechados para nós; olhamos as vitrines coloridas, sempre recheadas com os objetos mais ou menos obscuros dos nossos desejos.

Olhamos, olhamos, olhamos... na verdade vemos quase nada, mas olhamos tudo o tempo todo, até nos fartarmos, até nos cansarmos. Olhamos sem ver e olhamos sem parar, olhamos ansiosamente, colecionando cenas na retina como as praias colecionam grãos de areia.

Com grande sabedoria Rubem Alves diz: -“Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. O ato de ver não é coisa natural, precisa ser aprendido”.

Tempos atrás um amigo me mostrou algumas fotos de uma viagem que fez à Argentina, e em uma delas ele estava dentro de uma barcaça de rio pronto para fazer um passeio. Ele me falou sobre a barca, sobre o rio, sobre o preço da passagem e reclamou que a foto poderia ter ficado melhor se o dia não estivesse tão cinzento. Enquanto ele falava, a única coisa que verdadeiramente me chamava à atenção na foto era uma árvore ainda parcialmente coberta com as mesmas flores púrpuras que eu via derramadas, às centenas, por sobre toda calçada. Aquela árvore soberana, frondosa e bela, havia providenciado para os passantes um belíssimo tapete de flores, colorido como um dia de primavera. Que importava que o dia estivesse cinzento? Bastava olhar para aquela festa toda, dividida entre o chão e a árvore, para qualquer tristeza zarpar na mesma hora. Mas acreditem se quiserem: ele nunca, jamais, tinha visto as flores e a árvore antes de eu chamar a atenção dele para o fato. Ele até mesmo ficou surpreso com o fato de existir uma árvore lá!

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”

Eu realmente olho sem ver o movimento dos carros na rua, as filas dos bancos, das lotéricas, dos correios; eu olho sem ver as vitrines sempre cheias de coisas novas que apenas repetem as antigas em novas cores e formas; eu olho sem ver as massas que percorrem as ruas como zumbis, indo e vindo incessantemente, numa aparente alienação que chega a me cansar.

Mas meus olhos realmente param, vêem, reparam e se encantam com folhas, pedras, animais e flores quando os encontro num parque ou jardim (mesmo com os mais minúsculos!); meus olhos se regalam com as nuvens do céu quando são fofas demais, “penteadas pelos ventos” ou pesadas e escuras, prontas para deixar desaguar aquele mundaréu de água sobre esse mundo de meu Deus. Cada curva, cada textura, cada cor, cada forma exibida pela mãe natureza entra grandemente em mim, e não só pelos olhos, mas pelos poros. É um tipo de olhar mais pleno, que observa e repara atentamente. Um olhar mais integral, que permite a fusão do observador ao objeto observado.

Meus olhos se enternecem com filhotes de qualquer espécie. Eles, os meus olhos, também percorrem alegremente a parte mais alta dos prédios da cidade quando ando pelas ruas, encontrando quase sempre uma janela mais antiga, uma linha arquitetônica do início do século ou até mesmo outros olhos atentos, que também olham.

“Os olhos têm que ser educados para que nossa alegria aumente”, eis Rubem Alves de novo.

Sabe aquela cor que cria água na nossa boca, lembrando-nos de algum sabor inesquecível? Ela habita o mundo das coisas belas que nos rodeiam e que nem sempre percebemos, focalizados que estamos em poupar tempo. E são do mundo das coisas belas também aquela concha com forma bizarra e original, aquele quadro bonito pendurado na parede, os cachos redondinhos dos cabelos de uma criança, a mancha de molho de tomate com forma de borboleta sobre a toalha da mesa, o raio de sol que se esgueira pelo buraquinho da porta e vem mostrar para nós a poeira dançarina que habita nosso quarto, os olhos brilhantes daqueles que amam, as formas sensuais dos instrumentos de cordas, as texturas variadas que formam os corpos das pessoas.

Se podes olhar, vê; se podes ver, repara... e assim adentrarás este mundo das coisas belas, mundo proibido aos de olhos apressados e insensíveis, aos amargos e rancorosos, àqueles que já perderam de uma vez por todas o contato com aquela criança interior que vive dentro de cada um e que aponta com teimosia e fé inabalável para o futuro mais bonito, mais colorido e absolutamente encantador que ela sabe ser possível.
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