A BAILARINA E O HOMEM RIDÍCULO E VIL.
Ocasionalmente me pego prestando bastante atenção em crônicas, em poesias, nas letras das músicas que tocam no meu carro (são cds que seleciono com carinho, atenta apenas ao meu gosto pessoal). E, como não poderia deixar de ser, depois de ouvi-las, tento “ler nas entrelinhas” aquilo que não foi dito. Deixo aqui duas das minhas fontes de curtição e reflexão para vocês se deliciarem com elas e, quem sabe, pensarem sobre.
No primeiro, enquanto faz um rápido “mea culpa”, o autor (meu bem-amado Fernando Pessoa) discorre sobre a pretensa perfeição alheia em detrimento de sua parca, porém admitida, humanidade, enquanto que no segundo os autores (Chico Buarque e Edu Lobo, sempre maravilhosos) falam sobre uma perfeição inexistente, mas que nossos olhos enxergam, nas vidas alheias, em projeções que todos nós fazemos, inevitavelmente, em alguns momentos de nossas vidas.
POEMA EM LINHA RETA.
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
(Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
CIRANDA DA BAILARINA.
Procurando bem todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga e tem ameba só a bailarina é que não tem
E não tem coceira, verruga nem frieira, nem falta de maneira ela não tem...
Futucando bem todo mundo tem piolho ou tem cheiro de creolina
todo mundo tem um irmão meio zarolho só a bailarina é que não tem.
Nem unha encardida, nem dente com comida, nem casca de ferida ela não tem...
Não livra ninguém, todo mundo tem remela quando acorda as seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela só a bailarina é que não tem...
Medo de subir, gente, medo de cair, gente, medo de vertigem, quem não tem?
Confessando bem todo mundo faz pecado logo assim que a missa termina.
Todo mundo tem um primeiro namorado só a bailarina é que não tem.
Sujo atrás da orelha, bigode de groselha, calcinha um pouco velha ela não tem...
O padre também pode até ficar vermelho se o vento levanta a batina
Reparando bem todo mundo tem pentelho só a bailarina é que não tem...
Sala sem mobília, goteira na vasilha, problema na família quem não tem?
Procurando bem... todo mundo tem....
(Edu Lobo/ Chico Buarque)
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Era isso: nem super-heróis nem vilões, somos apenas humanos. Fico aqui torcendo para que todos nós ajustemos nossa visão e equilibremos nossos julgamentos, reconhecendo que somos muito menos vis do que tememos ser e que ninguém, mas ninguém mesmo, deixa de ter as características imperfeições humanas que possuímos e, que por sinal, nos irmanam e igualam diante da vida.
...
domingo, 1 de fevereiro de 2009
A VIAGEM.
É Sábado e o relógio já marca 23h00min. Após oito horas de aulas na faculdade e outras tantas de espera, finalmente embarco e sento no banco do ônibus que deverá conduzir-me de volta à minha casa, distante 200 km. Estico as pernas e reclino o encosto do banco, preparando meu ambiente das próximas três horas e meia.
E é então que eu o vejo: ele deve ter uns trinta anos, aproximadamente 1.70m de altura, cabelos crespos de cor indefinida e pele parda (daquele tom mais indefinido ainda que, em minha opinião, deveria se chamar "pardus brasiliensis", visto ser a cor da esmagadora maioria de nós). É um tipo de homem comum, desses que vemos todos os minutos de todos os dias em qualquer lugar de qualquer rua.
Ele carrega uma mochila puída, que creio que um dia tenha sido preta. Sem jeito, ele pede licença com um leve sotaque nordestino e coloca a mochila no bagageiro sobre a minha cabeça, saindo apressado em busca de alguma coisa que deixou lá fora. Retorna em seguida com uma criança de uns dois anos nos braços seguido de perto por uma mulher tão parda e comum quanto ele, talvez alguns anos mais nova. Eles transpiram suor e ansiedade, talvez pela viagem, talvez pelas incertezas da vida, não sei bem ao certo.
Ele se senta ao meu lado depois de acomodar a mulher, a bagagem dela e a criança nos dois bancos ao lado dos nossos e começa a mexer nos bolsos, tirando deles algumas notas amarrotadas, que alisa e arruma em algum tipo de ordem que foge ao meu conhecimento. Depois de contar tudo com muito cuidado, torna a guardar o dinheiro no bolso da calça.
O ônibus começa a andar e ele pergunta algo à mulher do outro lado do corredor, em voz baixa. Ela responde também baixinho, e ajeita melhor a criança no banco, reclinando-a sobre seu colo para que durma mais confortavelmente.
Logo imagino: são marido e mulher e estão viajando com o filho para algum lugar, por alguma razão. Porém, eles não são em nada parecidos com as pessoas que viajam nesta linha, gente próspera que geralmente viaja por prazer, lazer, para aumentar a cultura ou as experiências da vida. Não, eles me parecem na verdade ter usado seus últimos tostões naquela viagem que os levará de Curitiba a São Paulo num percurso de mais de seis horas e quatrocentos quilômetros.
E me pergunto silenciosamente: eles vão em busca de que, movidos pelo que? Estão em busca de encontrar algo bom lá na outra cidade grande ou estarão buscando deixar algo inútil e doloroso para trás? Serão, como outros milhões de brasileiros, impelidos sempre em frente pela fome, pela esperança de dias melhores, pela busca da melhoria material ou estarão apenas voltando às suas origens distantes, vencidos pela dureza econômica, pelo descaso social e pela falta de amor e fraternidade que atinge indistintamente brancos e negros, velhos e jovens, religiosos e ateus?
No decorrer da viagem ele se levanta algumas vezes do seu banco e vai em socorro da mulher quando é necessário mover a criança sem acordá-la, com um carinho quase impossível de se prever em mãos tão grossas e aparentemente insensíveis. E eles agem em movimentos cadenciados, quase ensaiados, sussurrando entre si palavras quase inaudíveis, nas quais pressinto cumplicidade, parceria e sintonia, como se ambos pulsassem numa mesma velocidade e intensidade, em total e completa harmonia.
Toda a pobreza que vi estampada nas roupas e bagagens, denunciada também pelas poucas notas tão cuidadosamente ajeitadas no fundo dos bolsos rotos, de repente se esvai, evapora, deixando em seu lugar a sensação de uma riqueza inigualável, de um possuir um algo que não tem preço. No lugar da pobreza, salta aos olhos agora apenas uma realização humana admirável, a do encontro real, afetuoso e respeitoso entre dois seres humanos que, apesar dos tropeços e do peso da vida cotidiana, usualmente dura e injusta, conseguem reservar um espaço dentro de si para o amor e o carinho, para o cuidado mútuo, para uma parceria efetiva compartilhada com outro ser, carente de cuidados, recursos e amor, o filho.
E neste momento, subitamente, parecem-me fúteis minhas pequenas buscas intelectuais, de crescimento profissional, da satisfação do ego com aquisições materiais, do encontro perfeito que meu coração idealiza. Tudo isso de repente me parece esvaziado de valor, pois compreendo que por mais que eu atinja todos meus objetivos atuais nada terá valido a pena se eu não levar junto comigo meu coração, se eu me esquecer que sem o outro "eu" não sou, se me deixar levar pela idéia (ilusória e geral) de que ter as vontades satisfeitas é o único e certo caminho para a felicidade.
Eu nunca soube seus nomes nem endereços, nunca pude saber ao certo os motivos da sua viagem, mas sempre que me lembro da lição de amor e ternura que presenciei naquele ônibus envio a eles pensamentos de afeto e desejos de felicidades. Eles merecem!
É Sábado e o relógio já marca 23h00min. Após oito horas de aulas na faculdade e outras tantas de espera, finalmente embarco e sento no banco do ônibus que deverá conduzir-me de volta à minha casa, distante 200 km. Estico as pernas e reclino o encosto do banco, preparando meu ambiente das próximas três horas e meia.
E é então que eu o vejo: ele deve ter uns trinta anos, aproximadamente 1.70m de altura, cabelos crespos de cor indefinida e pele parda (daquele tom mais indefinido ainda que, em minha opinião, deveria se chamar "pardus brasiliensis", visto ser a cor da esmagadora maioria de nós). É um tipo de homem comum, desses que vemos todos os minutos de todos os dias em qualquer lugar de qualquer rua.
Ele carrega uma mochila puída, que creio que um dia tenha sido preta. Sem jeito, ele pede licença com um leve sotaque nordestino e coloca a mochila no bagageiro sobre a minha cabeça, saindo apressado em busca de alguma coisa que deixou lá fora. Retorna em seguida com uma criança de uns dois anos nos braços seguido de perto por uma mulher tão parda e comum quanto ele, talvez alguns anos mais nova. Eles transpiram suor e ansiedade, talvez pela viagem, talvez pelas incertezas da vida, não sei bem ao certo.
Ele se senta ao meu lado depois de acomodar a mulher, a bagagem dela e a criança nos dois bancos ao lado dos nossos e começa a mexer nos bolsos, tirando deles algumas notas amarrotadas, que alisa e arruma em algum tipo de ordem que foge ao meu conhecimento. Depois de contar tudo com muito cuidado, torna a guardar o dinheiro no bolso da calça.
O ônibus começa a andar e ele pergunta algo à mulher do outro lado do corredor, em voz baixa. Ela responde também baixinho, e ajeita melhor a criança no banco, reclinando-a sobre seu colo para que durma mais confortavelmente.
Logo imagino: são marido e mulher e estão viajando com o filho para algum lugar, por alguma razão. Porém, eles não são em nada parecidos com as pessoas que viajam nesta linha, gente próspera que geralmente viaja por prazer, lazer, para aumentar a cultura ou as experiências da vida. Não, eles me parecem na verdade ter usado seus últimos tostões naquela viagem que os levará de Curitiba a São Paulo num percurso de mais de seis horas e quatrocentos quilômetros.
E me pergunto silenciosamente: eles vão em busca de que, movidos pelo que? Estão em busca de encontrar algo bom lá na outra cidade grande ou estarão buscando deixar algo inútil e doloroso para trás? Serão, como outros milhões de brasileiros, impelidos sempre em frente pela fome, pela esperança de dias melhores, pela busca da melhoria material ou estarão apenas voltando às suas origens distantes, vencidos pela dureza econômica, pelo descaso social e pela falta de amor e fraternidade que atinge indistintamente brancos e negros, velhos e jovens, religiosos e ateus?
No decorrer da viagem ele se levanta algumas vezes do seu banco e vai em socorro da mulher quando é necessário mover a criança sem acordá-la, com um carinho quase impossível de se prever em mãos tão grossas e aparentemente insensíveis. E eles agem em movimentos cadenciados, quase ensaiados, sussurrando entre si palavras quase inaudíveis, nas quais pressinto cumplicidade, parceria e sintonia, como se ambos pulsassem numa mesma velocidade e intensidade, em total e completa harmonia.
Toda a pobreza que vi estampada nas roupas e bagagens, denunciada também pelas poucas notas tão cuidadosamente ajeitadas no fundo dos bolsos rotos, de repente se esvai, evapora, deixando em seu lugar a sensação de uma riqueza inigualável, de um possuir um algo que não tem preço. No lugar da pobreza, salta aos olhos agora apenas uma realização humana admirável, a do encontro real, afetuoso e respeitoso entre dois seres humanos que, apesar dos tropeços e do peso da vida cotidiana, usualmente dura e injusta, conseguem reservar um espaço dentro de si para o amor e o carinho, para o cuidado mútuo, para uma parceria efetiva compartilhada com outro ser, carente de cuidados, recursos e amor, o filho.
E neste momento, subitamente, parecem-me fúteis minhas pequenas buscas intelectuais, de crescimento profissional, da satisfação do ego com aquisições materiais, do encontro perfeito que meu coração idealiza. Tudo isso de repente me parece esvaziado de valor, pois compreendo que por mais que eu atinja todos meus objetivos atuais nada terá valido a pena se eu não levar junto comigo meu coração, se eu me esquecer que sem o outro "eu" não sou, se me deixar levar pela idéia (ilusória e geral) de que ter as vontades satisfeitas é o único e certo caminho para a felicidade.
Eu nunca soube seus nomes nem endereços, nunca pude saber ao certo os motivos da sua viagem, mas sempre que me lembro da lição de amor e ternura que presenciei naquele ônibus envio a eles pensamentos de afeto e desejos de felicidades. Eles merecem!
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