quinta-feira, 21 de abril de 2011

OS ECOS DO DESCASO.


É cedo, a amanhã raiou há pouco. Noêmia se levanta, vai ao banheiro, lava o rosto, prende o longo cabelo num coque rápido e segue para a cozinha. Põe a água para ferver para o café, abre a janela e dá uma olhada no céu azul, imaginando quanta roupa ela poderá lavar durante o dia. Fica feliz, não há sinal de chuva e ela vai poder adiantar o serviço.

Abre o armário e encontra o saco de pão amassado, mas não vazio. O filho mais velho havia comido quase todos os pães ao chegar da escola, tarde da noite, cansado e faminto, mas ainda havia o suficiente para o café da manhã. Caprichosamente, ela pega os pãezinhos, umedece um por um e os coloca na assadeira de alumínio, levando-os ao forno para ficarem novamente crocantes.


Estica a toalha limpa sobre a mesa, pega duas canecas, dois pratinhos, uma faca e colherinhas. Lembra-se do açucareiro, da margarina e das poucas fatias de mortadela que haviam sobrado do dia anterior. Desde que o marido tinha ido embora com outra mulher, a vida ficara mais difícil e solitária, mas ela estava dando conta de criar os dois filhos com seu trabalho de costureira e com a ajuda dos irmãos da igreja, sempre presentes quando a necessidade se fazia maior.


Passa o café e vai acordar Ritinha, a filha de dez anos, que dorme na cama ao lado da sua e é fã de mortadela.A casa é pequena, então todos dividem o mesmo quarto. Chama pela filha, que acorda e se espreguiça. Diz bom dia saindo em seguida aos pulos, para lavar o rosto. Logo depois estão ambas sentadas à mesa, conversando sobre assuntos banais enquanto engolem o café com pão. Terminando a rápida refeição, Ritinha pega sua mochila, cheia de chaveirinhos pendurados, e se dirige contente para a escola, enquanto a mãe começa a limpeza da casa já pensando nas peças a cortar e costurar.


Em outro canto da cidade Wellington acorda sozinho, na casa quase sem móveis, sem beleza e sem aconchego. Sente fome, mas não há quem lhe faça o café ou lhe dirija um bom dia. Isso só acentua sua sensação de solidão, sua dor interior, fazendo fermentar seus pensamentos desencontrados. Pai e mãe, irmãos, amigos... tudo isso lhe falta, nada disso pertence à sua rotina. Ele tentou fazer amigos nas escolas onde estudou, mas nunca conseguiu ser realmente notado, visto, aceito, querido, sendo sempre apenas um nome a mais na lista de alunos e um rosto anônimo e desiludido na multidão das salas de aulas.


O pouco conforto que encontrara nos últimos anos solitários viera das leituras de textos religiosos que caíram em suas mãos por acaso. Incapaz de interpretá-los e compreendê-los sozinho, tanto quanto de procurar novamente o convívio de um grupo humano numa igreja qualquer, absorve destas leituras apenas conceitos vagos, representados por palavras desconexas que se agitam no seu interior. E hoje, por sinal, elas se agitam mais do que nunca, tornando-se dolorosas interrogações e acusações, afirmações de desesperança e abandono. Por onde andavam aqueles que lhe tinham negado amizade? Como viveriam aqueles que o haviam ignorado e espezinhado por anos a fio?


As perguntas crescem junto com a revolta, com a dor, com a solidão, com a sua incapacidade de lidar com a enormidade da sua confusão mental. Interiormente ele avalia novamente, como já vem fazendo há meses, a possibilidade de dar um fim àquele estado de coisas, colocando em prática seus planos de desforra e vingança. Decide-se a realizar os planos naquele mesmo dia. Para que esperar mais? Pelo que esperar mais? Pela compassividade de uma sociedade que nem sequer nota sua existência?


Resoluto, junta dentro da mochila as armas, as balas, a revolta, a solidão, a dor do anonimato e da falta de amor e segue resoluto para o local da sua ultima tentativa de uma vida normal, a escola onde estudou nos últimos anos. Ao chegar lá, não encontra mais os alunos que o desprezaram no seu tempo, mas seus olhos os enxergam representados por outras crianças inocentes, que ele ataca furiosamente pensando, talvez, em assim poder exterminar a dor que o corrói por dentro. Mata, fere, é baleado e, num ato final de supremo desespero, tira a própria vida, deixando registrado num papel qualquer toda sua dor e confusão interiores.


Daqui para frente, Noêmia não tomará mais seu café da manhã ao lado de Ritinha, porque ela e sua predileção por mortadela terminaram ali, no tiroteio. Daqui para frente, não haverá mais Wellington de tal, um coitado anônimo que só conseguiu despertar a atenção das pessoas de todo um planeta quando se tornou um assassino de crianças inocentes.


Ninguém ganha, todos perdem,


e infelizmente nada mudará para melhor depois disso.


Entristecedor.